Um tradutor da oralidade ancestral e um orientador para que voltemos a nos ver como criaturas da natureza, não como criadores. Assim eu poderia definir – com todas as limitações de uma definição – o escritor quilombola Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo.
A leitura de A Terra dá, a Terra quer flui no ritmo daquelas aulas que nos despertam sucessivas iluminações e entendimentos: Sim, é isso! Claro, faz todo o sentido! Por outro lado, como todo bom livro e boa fala, não apresenta receitas prontas e nos deixa instigados a amadurecer reflexões.
Sua estratégia discursiva é de inteligência ímpar: confrontar o vocabulário colonial para apontar os descaminhos da humanidade e propor novas expressões.
O exemplo disso que mais me tocou foi em relação à ideia de "desenvolvimento". No vocabulário colonial, desenvolvimento é uma coisa boa. Contudo, para Bispo, o mundo precisa de "envolvimento", porque envolver significa abraçar, viver organicamente como parte da natureza, não como alguém que des-envolve.
Muitas outras palavras são postas em xeque: importância, sociedade, cultura e Estado. Ao passo que novas expressões são semeadas: biointeração, confluência, saber circular, saber orgânico, contracolonialismo.
Nêgo Bispo vê, sente e percebe os cosmos. Não se diz humano, porque humano é aquele que exclui todas as outras possibilidades de vida no seu entorno. Humano é quem transforma a natureza em dinheiro, em mercadoria. Humano é quem desmata, esteriliza, extermina o diferente, desinfeta. É quem criou o calçado por ser incapaz de pisar a terra. É o vivente desconectado da natureza e do cosmos. O humano é cosmofóbico.
A leitura deste livro inevitavelmente me remeteu a outras obras contracolonialistas, como os livros A vida não é útil, Ideias para adiar o fim do mundo e Futuro ancestral (todos de Ailton Krenak), A queda do céu (de Davi Kopenawa e Bruce Albert) e a antologia afro-indígena Terra, composta de ensaios de diversos autores, dentre os quais o próprio Antônio Bispo dos Santos.
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Marcelo Titton
livreiro da Baleia
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